sábado, 23 de abril de 2011

Um olhar sobre Realengo

      Imagine um choro, mas não um choro qualquer. Ouça gritos tão contundentes quanto os de uma mãe que acaba de perder um filho. E um olhar petrificado de quem olha para a Medusa. Depois de ponderar todos esses fatores, talvez você tenha noção do que se passou na Escola da Chacina de Realengo. 
      Comecemos então a lhe contar, nobre leitor, o fato de que o Inferno não precisa ser necessariamente um local exclusivo dos que não apresentam mais uma casca orgânica e mesquinha. Poderia ficar aqui tecendo todas as minhas opiniões críticas sobre o mundo atual - ou deveria dizer desfile de Vaidades contemporâneo ? Não tenho dúvidas de que essa é a era de Afrodite. O império de Atenas parece estar às ruínas, tal como o Partenon, e o aquecimento global têm deixado Poseidon furiosíssimo. E Deméter está de braços cruzados, sem poder ajudar os agricultores. Mas deixemos essa questão de lado e analisemos o caso proposto, caso contrário, fugiremos facilmente do tema.
      Arrumei a minha mochila como de costume. Sempre tive de colocar os livros, o lanche , a escova de dentes, o fio dental, a pasta de dente...Enfim, tudo o que era necessário para assistir às aulas daquele dia. Acordar até que foi fácil, o complicado era se arrumar. Ser menina não é brincadeira ! Haja pente nesse cabelo rebelde e comprido. Ah, como era bom essa existência inocente e livre de tantas responsabilidades...
     Um gole de café com leite. Pão com manteiga. Escovar os dentes arrumar a mochila. Conversar com os pais durante o café-da-manhã. E ir juntamente com a mamãe até o carro. Eis aí a síntese da manhã antes de estar na sala de aula. Não era um hábito meu realizar todas essas ações rapidamente, mas hoje acordei especialmente alterada. Pesadelo horrível ! A bomba de Hiroshima caiu como um míssil sobre a minha carne. E assim todo o meu eu físico se desintegrou. 
      Estou na sala. Estamos em meio a uma atividade recreativa. A professora ensina atenciosamente a experiência prática de que o feijão nasceu em meio ao potinho de algodão. Olhos faiscavam diante do espetáculo da vida. Se tudo parasse por aí, ótimo. Estaríamos muito bem. Porém, conhecemos o popular sentido oposto. Foices, facas, falas...Tudo isso me atravessou como o vento cortante que passa de repente. E, de fato , a intuição não era enfeite. Parece que, de alguma forma, alguém tentava me alertar sobre o perigo iminente.
      Subitamente, surgiu um jovem. Desde que o vi, senti a impressão de que a temperatura ambiente despencou aos patamares polares. O olhar dele era mais frio do que o de um felino preste a atacar a sua presa. A professora estranhou bastante a presença inusitada do rapaz. Ele fora ex-aluno na época em que a professora havia iniciado a carreira no magistério.
     Quando ele levantou os dois revólveres, o desespero foi geral. Senti a foice da morte tangenciando o meu corpo. Era como se ela estivesse em meio o um ritual macabro para me levar a outro mundo. A professora pedia misericórida ao "inquisitor". Esse dizia , a todo instante, que os impuros deveriam ser extintos da face da Terra. 
      Um menino gordinho começou a chorar, afirmando que não queria morrer. Para a surpresa de todos, o jovem armado garantiu que a vida do menino seria poupada. A calma expressa pela voz do homem jovem era assustadora. Um autêntico filme de terror, só que ao vivo e a cores.
     Ele ordenou o enfileiramento de 8 meninas. Todas se ajoelharam a pedido do "juiz da vida". Ele atirou em todas. A morte foi inevitável.
     Desde então, não sei mais o que se passa. Como eu sei de tantos detalhes? Simples. Eu sou uma das meninas mortas nessa tragédia. Desde que cheguei aqui do outro lado, não consigo me desapegar totalmente da minha família. O sofrimento deles me toca. É sufocante. Porém, é necessário que eu me desligue desse mundo. Não quero ser mais uma alma penada. 
     A morte é uma passagem interessante. Aprende-se muito. Ou você achou até aqui que eu era uma criança com inteligência fora do comum devido a esse vocabulário? Não. É que , quando chegamos do outro lado, a memória volta. Dito isso, não posso dizer mais nada. A existência é repleta de mistérios. Cabe a você descobri-los. Enquanto isso, mando os meus votos de esperança a essas famílias arrasadas por esse maremoto metálico que afetou muito mais do que 12 vidas.
  
       

Um comentário:

Bruna disse...

tristeza, apenas isso.